Por que vivemos sem tempo para nada? — Gama Revista
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® Christian Marclay / White Cube

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Semana

Sem tempo, irmão

A sensação é de que temos menos tempo para fazer aquilo que nos dá prazer. Por que esse sentimento é tão comum e o que fazer para organizar melhor as prioridades do trabalho e da vida pessoal?

Leonardo Neiva 08 de Novembro de 2020

Sem tempo, irmão

Leonardo Neiva 08 de Novembro de 2020
® Christian Marclay / White Cube

A sensação é de que temos menos tempo para fazer aquilo que nos dá prazer. Por que esse sentimento é tão comum e o que fazer para organizar melhor as prioridades do trabalho e da vida pessoal?

Logo nas primeiras páginas do clássico “Alice no País das Maravilhas”, um coelho branco chama a atenção da jovem protagonista ao passar por ela enquanto retira um relógio do bolso do colete e resmunga “ai, ai, vou chegar atrasado demais”. O animal, que acaba levando Alice a se enfiar por uma toca desconhecida, hoje é visto como símbolo da pressa e da falta de tempo para completar atividades diárias, sentimentos que são também bastante humanos.

De fato, cada vez mais gente vem se sentindo na pele do coelho eternamente apressado, vendo o tempo escorrer pelos dedos em meio à rotina, num momento em que parece impossível se desconectar totalmente do trabalho, das pessoas ou de tudo mais que está acontecendo pelo mundo. O resultado é que, ao final do dia, sobram umas poucas horas para aproveitar o tempo livre.

Pode parecer até um certo lugar comum dizer que somos muito mais ocupados hoje do que no passado, mas, de acordo com a psicóloga e escritora britânica Claudia Hammond, essa afirmação não é necessariamente verdadeira. Segundo ela, as pesquisas feitas na década de 1950 sobre o uso do tempo não tinham resultados muito diferentes de estudos recentes a respeito do tema, feitos antes da pandemia. Então, se as pessoas têm em média tanto tempo livre hoje quanto naquela época, a diferença está na qualidade desse tempo.

Sentimos que estamos mais ocupados por causa do desaparecimento dos limites entre trabalho e vida social

“Sentimos que estamos mais ocupados por causa do desaparecimento dos limites entre trabalho e vida social. Só de saber que seu chefe pode te enviar um email ou uma mensagem de texto tarde da noite, você já fica menos à vontade”, diz a psicóloga, autora do livro “Time Warped: Unlocking the Mysteries of Time Perception” (tempo distorcido: destravando os mistérios da percepção do tempo), sem tradução para o português.

Esses limites entre trabalho e tempo de lazer ficaram ainda mais turvos com o isolamento social, que obrigou muita gente a bater cartão direto da sala de casa. A mudança pode acabar mexendo de forma significativa no tempo à disposição para o lazer pela primeira vez desde a década de 1950. Hammond evoca alguns estudos recentes que mostram que, embora o período de trabalho oficial não tenha mudado na maioria dos casos, as pessoas hoje gastam sim mais tempo exercendo suas atividades profissionais. Isso porque, estando sempre dentro de um mesmo ambiente, redobra a dificuldade de se desligar.

A sensação de que nosso tempo está encolhendo não tem tanto a ver com o tiquetaquear dos ponteiros do relógio, mas com a nossa percepção da passagem das horas, esta sim subjetiva. De acordo com a professora de psicologia da Unesp, Mary Okamoto, o home office abrupto e em massa promovido pela pandemia retirou várias das bases da nossa rotina, como os ambientes externos que frequentávamos diariamente e as divisões do tempo em atividades curtas: pegar um ônibus, sair para o almoço, pausar para um cafezinho. Com a mudança, passamos a sentir falta de prazos mais definidos e estranhamos a permanência num único lugar, o que nos força a fazer um novo planejamento do cotidiano.

Para a professora Martha Hübner, do Instituto de Psicologia da USP, a pandemia tornou a experiência do tempo mais pessoal, pois cada um está passando por ela em seu próprio ambiente, com regras — ou a falta delas — estabelecidas de forma individual. “A noção de tempo mudou. Está mais confusa, ilógica, menos unânime. Em geral, a pessoa trabalha mais, se cansa mais, vive menos e, no fim do dia, não percebe que não fez nada daquilo que queria.”

Sem tempo desde sempre

Essa sensação de falta de tempo, no entanto, não é nova. Ela pode até ter se acelerado com a pandemia, mas vinha se fortalecendo desde o início da produção industrial, lá no século 18. “Nós já tínhamos essa sensação de que o tempo é curto, que passa muito rápido. Você termina o dia e sente que não conseguiu concluir todas as atividades que estavam planejadas”, aponta Okamoto.

Além disso, não precisar pegar trânsito ou enfrentar o transporte público lotado todos os dias é certamente uma vantagem, mas que pode ser contrabalanceada por outros aspectos não tão bons assim. Um exemplo é a questão tecnológica. Tarefas simples como entrar num sistema profissional ou fazer um download podem levar muito mais tempo em casa, distante dos recursos de um escritório profissional.

E, por incrível que pareça, também há um estímulo social para estar sempre com pressa: ser apressado pode ser “cool”. Uma pesquisa conduzida em 2017 por professores das universidades de Columbia, Harvard e Georgetown concluiu que pessoas muito ocupadas nos parecem inacessíveis e acabam ganhando um status superior quando comparadas àquelas com mais tempo para gastar. Ou seja, o tempo delas, escasso, nos parece mais valioso do que o dos pobres mortais que podem se dar ao luxo de passear no shopping durante um dia de semana.

“Estar sempre ocupado é uma espécie de medalha de honra”, explica Hammond. “Em parte por esse motivo, nos pressionamos a ser bons em tudo, desde aprender uma nova língua a servir refeições incríveis.” Segundo conta a escritora, um exemplo desse fenômeno é o Reino Unido, que, durante o lockdown, viveu uma febre por aprender a fazer pão sourdough caseiro. “Havia a sensação de que era preciso usar bem esse tempo, em vez de simplesmente passar por ele, o que não teria sido nenhum problema.”

Em busca do tempo perdido

Em 1973, o escritor alemão Michael Ende (1929-1995) — autor de “A História Sem Fim”, que deu origem ao clássico da Sessão da Tarde — já estava preocupado com a questão do tempo. Em “Momo e o Senhor do Tempo”, ele criou uma fábula sobre um mundo em que economizar tempo significa se livrar de todas as atividades que pareçam supérfluas, como se divertir, criar peças artísticas ou dormir. Só que, na narrativa, o tempo economizado jamais era recuperado.

A história deixa claro que o autor entendia a subjetividade do tempo psicológico, que fica evidente em uma de suas falas mais conhecidas: “Calendários e relógios existem para medir o tempo, mas isso significa pouco. Todos sabemos que uma hora pode parecer uma eternidade ou sumir num instante, dependendo de como a gastarmos.”

Uma hora pode parecer uma eternidade ou sumir num instante, dependendo de como a gastarmos

Realmente, nossa percepção da passagem do tempo muda de acordo com a situação em que nos encontramos. Atividades prazerosas parecem passar voando, enquanto algo que consideramos pouco interessante, ou chato mesmo, leva uma eternidade para acabar. Da mesma forma, ter compromissos demais ao longo de um mesmo dia deixa a impressão de que não há tempo suficiente para nada.

No entanto, há formas de evitar ou reduzir essa sensação de falta de tempo. Uma delas é criar cronogramas detalhados das atividades do dia, mesmo que eles fiquem só dentro da cabeça. É o que explica Alberto Filgueiras, professor do Instituto de Psicologia da Uerj. “Para pessoas que estão fazendo home office, o ideal é escolher que rotina você quer levar, organizar mentalmente o dia. Quanto mais organizado você for, mais vai ser capaz de lidar com a situação e controlar o uso do seu tempo.”

Mudança de foco

Claudia Hammond sugere que, mesmo em home office, o trabalhador deve ser rígido com os horários de entrada e saída, evitando ao máximo ultrapassá-los. Para desestressar, uma boa ideia é encontrar uma atividade prazerosa que preencha uma pausa de 15 minutos bem no meio de uma tarde desgastante de trabalho. “Pessoalmente, gosto de jardinagem. Agora uma tempestade está roncando lá fora, mas, quando o tempo está bom, passo alguns minutos cuidando das flores e sentindo ondas de relaxamento caindo sobre mim.” Ela reforça que as pessoas não devem se sentir culpadas por parar de trabalhar por alguns instantes, já que a atividade é essencial para manter a saúde mental e ajuda até a aumentar a produtividade.

Procurar outras atividades para não passar tempo demais debruçado sobre uma mesma coisa pode até tornar mais longa nossa percepção do tempo, de acordo com a psicóloga Mary Okamoto. O ritmo do trabalho é diferente daquele do lazer e, em meio à mesmice dos dias vividos na quarentena, alternar esses dois é uma maneira de estabelecer uma rotina diversificada e superar a impressão de que passamos todo o tempo fazendo uma mesma coisa. Só não vale tentar sobrepor o trabalho no computador com a leitura de notícias na internet, pois nesse caso não há uma quebra no padrão das atividades, que continuam bastante semelhantes.

Para quem é obrigado a ficar quase sempre em casa, a dica da professora Martha Hübner é procurar se deslocar dentro do imóvel, trabalhando cada dia, ou até em diferentes horários num mesmo dia, em cômodos diferentes. Isso traria uma mudança visual com potencial para estimular as sensações de mudança e passagem de tempo.

Um problema em meio a isso tudo é que o ser humano tende a achar que, no futuro, terá mais tempo e se organizará melhor do que hoje — pensamento que, aliás, quase nunca se reflete na realidade. Para evitar se sobrecarregar com compromissos a longo prazo — e ter certeza de que vale a pena dizer sim — a sugestão de Hammond é se perguntar: eu precisaria ou gostaria de fazer isso, caso a atividade acontecesse amanhã? Se a resposta for não, não há mal algum em jogar a toalha.

“É preciso aceitar que os compromissos nunca vão acabar, e está tudo bem. Canos estouram, pessoas ficam doentes, coisas inesperadas acontecem. Sempre poderíamos estar fazendo algo mais, mas talvez devêssemos nos permitir descansar. Ou seja, desistir daquilo que não nos traz prazer.”

Dicas para lidar melhor com o tempo

  • Organize o dia. Mesmo que você não se dê bem com planilhas, listar as atividades diárias mentalmente te dá maior controle sobre o uso do tempo.
  • Não passe tempo demais trabalhando. Seja rígido com seus horários de entrada e saída, mesmo em home office.
  • Dê uma pausa curta no trabalho para fazer algo que te satisfaça, como cuidar das plantas. Isso ajuda a baixar a ansiedade.
  • Não trabalhe o tempo todo num só lugar. A mudança de ambientes pode ajudar o cérebro a ter uma noção melhor do tempo que passa.
  • Para não se sobrecarregar de compromissos, opte sempre por aqueles que sejam necessários e que te deem alguma satisfação no final do dia.