Cindy Wiesner fala sobre as lutas nos EUA contra o trumpismo, o racismo e o patriarcado

05/01/2021 |

Por Capire

Cindy Wiesner é diretora executiva da Grassroots Global Justice Alliance, aliança de organizações e redes populares, com sede nos EUA.

Foto/Photo: Helena Zelic. Encuentro Antiimperialista de Solidaridad, por la Democracia y contra el Neoliberalismo. Cuba, 2019.

A pandemia nos mostrou que temos de escolher se continuaremos nessa tendência de autoritarismo global ou se construiremos uma coisa totalmente nova.

A equipe do portal Capire conversou com Cindy Wiesner sobre a visão dos movimentos populares e os desafios das lutas feministas e antirracistas nos Estados Unidos. Cindy fala sobre a derrota de Donald Trump nas eleições de 2020 nos Estados Unidos, a diversidade do neoliberalismo e as lutas contra ele, além de discorrer sobre o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) e suas propostas antirracistas, e sobre a economia feminista e a luta por justiça ambiental.

Cindy Wiesner é diretora-executiva da Grassroots Global Justice Alliance (GGJ), aliança estadunidense de organizações comunitárias populares e de redes regionais e nacionais. A GGJ é uma aliança multirracial, multissetorial e intergeracional para a construção de movimentos. Ela surgiu para dizer “não” às guerras e ocupações, não apenas ao redor do mundo, mas também nas comunidades nos Estados Unidos; para dizer “não” à crise climática e ao aquecimento global e para propor uma transição justa para uma economia regenerativa antirracista e feminista. A organização atua em alianças de movimentos sociais internacionais como a Jornada Continental pela Democracia e Contra o Neoliberalismoe também é membro da Marcha Mundial das Mulheres.

Filha de mãe salvadorenha e pai colombiano-alemão, Cindy nasceu em um bairro popular de Hollywood, na Califórnia, e se politizou na universidade no começo dos anos 1990. Foi bastante influenciada pelo movimento anti-apartheid, pelo movimento anti-intervenção na América Central e também pela luta contra a violência policial. Tornou-se feminista, assumiu-se lésbica e percebeu a potência que existe em organizar as pessoas nas ruas contra a guerra, mas também em construir organizações de luta da classe trabalhadora. Confira a entrevista abaixo:

Desde antes das eleições, acompanhamos o trabalho intenso que você realizou com o objetivo político de tirar Trump do governo. Considerando os avanços da mobilização organizacional e popular por vidas negras, pelas mulheres e também das organizações da esquerda, gostaríamos de ouvir sua análise sobre o que significa a derrota eleitoral de Trump.

Em 2016, quando Trump se elegeu, sabíamos que teríamos que nos unir de uma maneira que os movimentos dos Estados Unidos não se uniam havia muitas décadas. Sabíamos que o governo dele perseguiria todos os avanços e conquistas civis, trabalhistas e por justiça social. Ele começou a atacar e a fazer cortes. Ele basicamente começou a cortar toda a rede de segurança na saúde, habitação e educação, lavando as próprias mãos de qualquer responsabilidade que o Estado deveria ter com  sua população. Nós sabíamos que teríamos que lutar contra ele em todos os níveis. Contra a forte histeria anti-imigração, a negação das mudanças climáticas e a orientação de Trump para furar, cavar e queimar a terra e os recursos naturais, mas também contra o racismo evidente dele. Nos últimos quatro anos, nós assistimos a tantos ataques, um após o outro, e, apesar de termos derrotado Trump agora, a realidade é que vai demorar décadas para voltar de fato para onde estávamos e conseguir seguir em frente.

Nosso desafio é reconstruir, mas com muito mais ousadia. É isso que essas diversas crises estão nos mostrando. Nós temos que continuar pressionando. Temos que decidir se vamos continuar com essa tendência da direita autoritária global e o que nós chamamos de “diversidade do neoliberalismo”, como o governo [eleito dos EUA] de [Joe] Biden e [Kamala] Harris, ou se construiremos algo completamente novo. Para a Grassroots Global Justice e muitas das organizações e alianças das quais fazemos parte, temos a oportunidade agora de promover uma reorganização total da sociedade. O que parecia impossível nove meses atrás agora é possível. Vai exigir uma organização profunda, vai exigir estratégia, vai exigir ação, vai exigir demandas legislativas e também força eleitoral, mas nós temos a oportunidade de oferecer uma visão alternativa.

Em meados de 2020, nos Estados Unidos, nós tivemos a maior mobilização de massa de nossa história. Estima-se que cinquenta milhões de pessoas foram para as ruas em resposta ao assassinato de George Floyd e de muitas outras pessoas negras. Nós vimos uma frente multirracial liderada por pessoas negras em todas as cidades sair às ruas durante a pandemia aos milhões, todos os dias, em mobilização permanente em defesa das vidas negras. Isso realmente mostrou um acerto de contas com o racismo e a supremacia branca em todos os níveis. Foi muito importante porque também inspirou mobilizações em todo mundo.

A eleição de 2016 neste país criou a bancada hoje conhecida como “The Squad” [gíria com sentido de “rapa”, “galera”] , com as deputadas Alexandria Ocasio-Cortez, Rashida Tlaib, Ilhan Omar e Ayanna Pressley. Nesta última eleição, a “rapa” cresceu  com um pessoal ainda mais radical. É importante refletirmos sobre essa agenda bastante política e abrangente, com muitas camadas, que começa a elaborar demandas sobre, por exemplo, um resgate financeiro popular  em vez do resgate financeiro de grandes corporações, o Green New Deal [uma agenda política ecossocialista para o enfrentamento das mudanças climáticas] , a demanda do Movement for Black Lives [coalizão de mais de 50 organizações na luta negra antirracista dos EUA] pelo chamado Breathe Act[projeto de lei em resposta aos recentes casos de violência policial, com diversas propostas, incluindo a redução do investimento nas forças policiais e o aumento do investimento em alternativas para a segurança pública], as demandas das e dos estudantes para cancelar dívidas estudantis, o Medicare for All [programa de saúde para todos], apenas para mencionar algumas das principais reivindicações dos movimentos, e também desafiar o processo antidemocrático de temas que nem chegam ao que é realmente desafiador no colégio eleitoral.

Como muita gente deve ter percebido, há o voto popular, que basicamente não conta de verdade, e há o sistema do colégio eleitoral, que define a presidência. E esse colégio eleitoral deveria ser abolido, porque foi criado durante o período da escravidão e existe apenas para priorizar a  elite branca dominante. Nós temos que abolir isso, porque é incongruente com a ideia de voto popular, em que uma pessoa equivale a um voto. Com o resultado das eleições, nós dos movimentos sociais estamos nos posicionando para conseguir articular um conjunto coerente de demandas transformadoras, mas essa não é uma tarefa fácil, e eu acho que será o desafio para os movimentos: se unir nesse meio que “regime pós-Trump” e conseguir continuar lutando contra o trumpismo e o neoliberalismo.

A derrota eleitoral de Trump foi a derrota eleitoral da direita autoritária, fascista, racista e misógina, mas mesmo derrotado, ele continua com uma importante presença na sociedade, expressa inclusive no número de votos que ele teve. Ao mesmo tempo, Joe Biden e Kamala Harris apresentam uma aparência democrática, mas nós sabemos que o projeto dos democratas de Wall Street está relacionado com o que chamamos de “autoritarismo de mercado”. Como você avalia as características do governo Biden e sua composição, pensando sobre os desafios para a democracia e a luta contra o neoliberalismo nesse novo cenário?

Haverá um certo alívio pelo fato de Trump não estar mais no cargo, por causa dos danos e ataques e, de várias maneiras, do genocídio relacionado à pandemia. O número de pessoas mortas por Covid-19 nos Estados Unidos é vergonhoso e é resultado da má administração dos republicanos e de Trump com relação à  pandemia. Quando as pessoas falam de Biden, dizem que ele é empático. “Ele se preocupa com as pessoas. Ele não vai ser vulgar.” Para muita gente, isso importa e vai bastar, e é aí que as pessoas vão deixar de prestar atenção na política. Sofremos um relacionamento abusivo com Trump, então, com Biden, a sensação será melhor e diferente. Nós, como movimento, temos que entender que, para as pessoas, isso é importante, não sentir esse nível de pavor e medo é importante. Então, o movimento deve se posicionar para continuar construindo a partir da energia desse momento e deixar claro que uma abordagem neoliberal pode até ser mais gentil, mas não será melhor nem atenderá às necessidades de todas as pessoas.

Temos um sistema bipartidário. Não existem alternativas viáveis em termos de outros partidos. A maioria de nós, da esquerda, tem uma grande crítica ao Partido Democrata. O Partido Democrata não deu a devida importância ao voto negro, latino, feminino e progressista. Em todo pleito, a legenda continua criando estratégias e investindo recursos para tentar convencer os eleitores brancos que votaram em Trump a votar no Partido Democrata, dedicando mais tempo e recursos na centro-direita e não no voto progressista  e de esquerda. Essa estratégia fracassou, e por isso Hillary Clinton perdeu em 2016. Se não fosse pela imensa revolta que aconteceu no verão [meados de 2020], Biden teria perdido, por causa da insistência do Partido Democrata em não falar sobre questões relevantes para a população negra, latina, da classe trabalhadora, etc. O partido não dá a devida importância ao nosso voto.

As pessoas que protagonizaram a transformação foram fortalecidas pela revolta desse verão. Fizemos parte de um impulso que canalizou a revolta e conseguiu colocar  esse movimento no debate eleitoral. Tivemos um número sem precedentes de votos entre a população latina, jovem e negra, particularmente em cidades negras como Detroit, Filadélfia, Atlanta e cidades latinas como Phoenix. Os lugares onde o pleito acabou sendo contestado foram os que deram a eleição  para Biden e Harris.

O presidente eleito Biden e a vice-presidenta eleita Harris estão nomeando muitas mulheres e pessoas negras e latinas para cargos ministeriais e eu acredito que as pessoas sentem que isso é importante. Temos Kamala Harris, a primeira mulher, primeira afro-americana, primeira sul-asiática e primeira filha de imigrantes a ocupar o cargo de vice-presidenta e temos que ter muita clareza sobre essa noção de diversidade do neoliberalismo. Na campanha, Biden definiu quatro áreas prioritárias: justiça racial, justiça climática, economia e a pandemia. Isso é ótimo! São ótimas  prioridades, mas quando vemos quem ele colocou no gabinete para dirigir os diversos departamentos do governo, é um monte de gente da era [de Barack] Obama, pessoas que têm laços com Wall Street, com a indústria, pessoas que fazem parte do problema. Mas aí temos o primeiro homem negro nomeado para comandar o Departamento de Defesa, colocado à frente do Pentágono, e todo mundo acha isso ótimo, mas ele está na diretoria da Raytheon Technologies, empresa militar de armamentos . Por isso essa questão da identidade e da diversidade do neoliberalismo é muito importante para a gente entender que, sim, vai haver muitos “primeiros”. Ele vai usar a representatividade das pessoas, mas, por isso, muita gente não vai questionar quais são as políticas defendidas por elas nem quais foram as práticas delas no passado, e isso é perigoso. Precisamos continuar nos mobilizando, pressionando e desenvolvendo uma agenda que vá além de nossos movimentos, mas que se torne parte de um momento maior, para que as pessoas comecem a elaborar e expressar o motivo pelo qual precisamos de um Green New Deal, do Breathe Act, por que precisamos reduzir o financiamento do Pentágono, etc. Expressar por que precisamos das coisas que exigimos.

Temos realizado muitas conversas pela Rising Majority [coalizão que busca desenvolver uma estratégia coletiva e uma prática compartilhada que envolve forças que lutam por trabalho, juventude, abolicionismo penal, direitos de imigrantes, mudanças climáticas, feminismo, movimentos contra as guerras/anti-imperialistas e por justiça econômica] sobre o que queremos dizer com democracia e democracia radical. Temos certeza de que vivemos em uma democracia burguesa e essa não é a democracia em que acreditamos. Então, como podemos continuar a articular e praticar a democracia radical? Para nós, é muito importante ter um relacionamento com nossos irmãos e irmãs nas Américas e ao redor do mundo, porque temos muito a aprender e há uma oportunidade para um compartilhamento profundo. Poder olhar para o Chile, por exemplo. O que começou como uma luta por preços mais justos nas passagens de transporte resultou em uma mudança na Constituição, e isso foi feito por meio de uma Assembleia Constituinte. Essas são lições e experiências muito importantes. O que parecia impossível é possível. Essa é a lição desse ano que passou.

Como você vê as propostas antirracistas de reduzir o financiamento das polícias e a relação dessas propostas com a política externa e a militarização?

Cerca de seis anos atrás, quando o movimento Black Lives Matter nasceu depois do trágico assassinato de Michael Brown, houve mobilizações massivas e a bandeira que surgiu em torno do Black Lives Matter  ecoou e milhões foram às ruas. Desde então, essa mobilização tenta entender como evoluir de um movimento espontâneo para uma organização, e isso não é fácil e não é algo que acontece o tempo todo. Eles realmente se empenharam e, alguns anos depois, criaram uma rede chamada Movement for Black Lives, formada por cerca de 150 membros. Eles construíram diversos focos em torno de políticas, formação política e a construção de uma frente única multirracial liderada por pessoas negras. Esse movimento é liderado principalmente por mulheres negras que são feministas, anticapitalistas e anti-imperialistas. Muitas são queer e muitas são pessoas não conformes aos padrões de gênero Esse núcleo de liderança é muito visionário. Elas criaram uma visão de  uma agenda radical negra e, dentro dela, querem combater o incrementalismo. Muitas pessoas diziam que a polícia só precisava de capacitação sobre questões raciais ou de câmeras nos uniformes e nas viaturas para evitar ações tão terroristas por parte dos agentes. Mas essas abordagens não reduziram a violência policial em nada. Parte da visão mais ampla, eu diria, é que o Movement for Black Lives tem uma perspectiva abolicionista penal, seguindo a formulação de Angela Davis a respeito do abolicionismo feminista, defendendo a abolição do sistema prisional e levantando a questão: como podemos viver e redefinir as noções de segurança pública? Como pensamos em reparação quando o dano é causado? Essa é a base política que dá origem às ideias e à bandeira da redução do financiamento das polícias.

O movimento escolheu a bandeira de “desfinanciar a polícia” e essa é uma bandeira muito polêmica. Os democratas e os democratas centristas estão colocando a culpa pelas perdas do partido no âmbito estadual na defesa do corte do financiamento das polícias, porque alguns candidatos apoiaram essa bandeira. Biden deixou muito claro que não apoia essa reivindicação. Até Bernie Sanders afirmou não apoiá-la. Trump e todos os republicanos pensam que isso é a maior blasfêmia, como se fosse o Satanás! [risos] O que aconteceu foi que isso levou as pessoas a questionar por que os órgãos policiais recebem milhões e milhões de dólares. E, de fato, em muitas cidades, quase metade do orçamento municipal vai para a polícia. Essa mobilização realmente começou a criar um novo paradigma em torno do questionamento de “por que financiamos essas pessoas que estão matando pessoas, aterrorizando comunidades negras e comunidades de imigrantes?” Tudo isso se tornou um alerta, especialmente para a população estadunidense branca acordar e ver o assassinato de pessoas negras dia após dia. Não é nenhuma novidade e continua acontecendo. Há dois dias assassinaram outro jovem em Ohio. As pessoas são mortas todos os dias, como no Brasil e em outros lugares.

O que eu acho que é realmente inteligente no Breathe Act é que essa mobilização  criou toda uma agenda legislativa que afirma que, se você tirar o investimento da polícia, poderá investir em muitas outras áreas importantes, como saúde mental, educação e geração de empregos. E essas propostas vêm do Movement for Black Lives, que  conseguiu se mobilizar muito rapidamente nas ruas, mas também formular essa proposta para o desfinanciamento das polícias.

E como isso se conecta com a política externa e militarização?

No que se refere à militarização, há um movimento crescente que se organiza em torno do que chamamos de desfinanciamento do complexo industrial militar, que defende a redução dos recursos destinados  ao Pentágono, a bases militares, prisões e ao ICE [a agência de imigração e controle de aduanas dos EUA]. Defende também que haja clareza sobre quanto do nosso orçamento federal é militarizado — assim como os orçamentos locais e estaduais, quase dois terços do nosso orçamento nacional é militarizado. Temos feito as conexões entre o desfinanciamento das polícias e o desfinanciamento do complexo industrial militar. Isso é muito significativo. Faz parte do nosso trabalho e das nossas demandas começar realmente a pensar em campanhas em torno do desfinanciamento e forçar o questionamento sobre os investimentos  do governo dos EUA e o destino do dinheiro público. Nesse último ano, participamos de um processo denominado Feminist Foreign Policy (Política Externa Feminista), e a partir dessa iniciativa lançaremos nosso relatório com uma abordagem feminista sobre a política externa, explicando como entendemos as nuances do que significa elaborar  nossa posição sobre questões como sanções. Sabemos que as sanções matam, mas é uma morte lenta, de fome ou retenção de remédios para a população. Também fala sobre qual é nossa posição sobre diplomacia, quais são nossas recomendações a respeito de guerras e ocupações.

Algumas pessoas da esquerda estadunidense têm uma posição reacionária quando se trata de Coreia, Venezuela e Cuba. Parte do que estamos tentando articular é uma nova organização, e sabemos que Biden vai entrar com toda a sua perspectiva de redefinir os EUA como potência global. Ele havia afirmado que Trump era um nacionalista “antiglobalista”, portanto, os EUA estavam sendo percebidos como enfraquecidos, e ele acredita que precisamos reivindicar essa hegemonia global. Isso é perigoso. Especialmente porque Biden é “mais legal” e empático, acho que a agenda da política externa será mais complicada para as pessoas nos Estados Unidos, mas é evidente que será também para as pessoas ao redor do mundo. Minha previsão é que Biden vai voltar a promover  uma agressão bélica global maior, apoiando ocupações, a militarização e possíveis intervenções em países como Irã e Venezuela. Nós elaboramos nossa compreensão de por que é importante para nós continuar focando essa tentativa de reposicionamento e não ficarmos confortáveis ​​com o governo Biden-Harris, porque ele pode voltar ao mesmo nível de agressão, guerra e ocupação da era Obama ou mesmo da era Bill Clinton.

Você defende as propostas da economia feminista regenerativa e também participa desse processo de convergência para um Green New Deal. Do lado de fora, porém, vimos repercussões sobre a ideia do Green New Deal estar ligada a um novo impulso para a financeirização da natureza, a economia verde. Você poderia nos explicar um pouco mais sobre as estratégias da esquerda e dos movimentos para essa proposta?

Como parte do movimento por justiça ambiental e justiça climática, da Grassroots Global Justice Alliance, da Indigenous Environmental Network [Rede Ambiental Indígena — IEN] e da Climate Justice Alliance, há muitos anos seguimos o processo da COP [Conferência das  Partes da Convenção-Quadro da Organização das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima). Participamos da conferência em Cochabamba, Bolívia, em 2010 e também da Cúpula dos Povos na Rio+20 com a Marcha Mundial das Mulheres, a Via Campesina e a Amigos da Terra. Fazemos uma crítica aos mecanismos do mercado de carbono e à dependência do que chamamos de soluções falsas, que basicamente são soluções de mercado impulsionadas não apenas pela ONU [Organização das Nações Unidas], mas também por empresas e por muitas das organizações internacionais ligadas às questões das mudanças climáticas como uma forma de resolver a questão do aquecimento global. Há toda uma crítica ao fracking [fraturamento hidráulico, tecnologia de extração de petróleo e gás], à energia nuclear e à geoengenharia e às “soluções técnicas” para a crise ecológica. Acreditamos na importância de interromper as emissões de carbono na fonte, o que significa acabar com a construção de  gasodutos, acabar com o fraturamento hidráulico e acabar com o uso de energia nuclear como fonte de energia. Nossa elaboração vai no sentido de  que precisamos de uma transição justa para uma economia regenerativa. Um componente disso é refletir de fato sobre as economias vivas locais, trazendo os conceitos de soberania alimentar, democracia energética, de comuns e dos direitos da natureza, e isso significa realmente reconceituar a reorganização da sociedade e da forma como vivemos.

Vivemos em um planeta finito Existe um limite e nós já o avistamos, com o aumento de inundações, furacões, incêndios florestais, secas, etc. Essas catástrofes que ocorriam de vez em quando já estão se tornando normais, quase sazonais. Todos os anos, agora, toda a costa da Califórnia fica em chamas e furacões assolam Porto Rico, a Costa do Golfo e outras partes da América Central, provocando uma devastação total. Então, quando o Green New Deal nasceu, não surgiu a partir de nossos movimentos, não veio da nossa elaboração. Ele partiu da deputada Alexandria Ocasio-Cortez e de Bernie Sanders, do movimento Sunrise, organização de jovens que tocou a imaginação radical de muita gente, despertando a ideia de que precisávamos reunir esse novo tipo de contrato econômico e político, criando empregos e uma economia verde. Depois que o Green New Deal ganhou força, o campo das organizações populares sentiu que era importante levar nossa política e nossas soluções para o nível legislativo. Todas as quatro alianças do It Takes Roots agora fazem parte da Rede do Green New Deal, que é uma nova articulação nacional que está organizando para incidir sobre a agenda legislativa no Congresso. Achamos que era importante estar na mesa de negociação e essa foi uma decisão importante, apesar da forma como a proposta foi iniciada, porque queríamos moldar e definir o que o Green New Deal realmente deveria ser, de modo que não fosse baseado em um capitalismo verde nem em um modelo de greenwashing — que só tivesse uma roupagem verde. O que queremos mesmo é que seja uma proposta baseada no que acreditamos: em uma economia regenerativa antirracista e feminista.

Essa é uma grande luta, e você tem razão: todo mundo está definindo o Green New Deal e não há uma estrutura comum a essas definições que explique o que ele significa. Essa é parte do problema. Elaboramos um relatório lançado no primeiro semestre do ano passado chamado People’s Orientation to a Regenerative Economy [Guia Popular para uma Economia Regenerativa[5] ], com 14 propostas sobre nossa visão a respeito de uma economia regenerativa a partir de uma perspectiva indígena, de uma perspectiva de libertação negra, de uma perspectiva de soberania alimentar e agroecologia e de uma perspectiva feminista. É por isso que lutamos! O Green New Deal é uma demanda para uma etapa de transição, e agora estamos lutando com nossos aliados no movimento de combate às mudanças climáticas, nos sindicatos, no movimento Sunrise e com políticos progressistas eleitos para avançar no que acreditamos que precisa entrar nessa proposta. Mas sim, temos que ter cuidado quando acontecem as conferências da ONU e do clima acontecem e quando as corporações promovem o Green New Deal, porque esses setores têm facilidade de cooptá-lo e encontrar maneiras de lucrar com o projeto, dando uma roupagem verde a tudo ou incluindo soluções falsas no marco legal de um Green New Deal global.

Para nós, está muito claro que a soberania indígena e a defesa da terra, a defesa das florestas e a incorporação dos direitos da natureza precisam ser aspectos centrais da proposta. Temos conversado com a Amigos da Terra na América Latina, com o MAB [Movimento dos Atingidos por Barragens] e outros, para refletir de fato sobre como definimos e o que entendemos por democracia energética e nacionalização da matriz energética e quais são alguns dos problemas encontrados em alguns desses modelos. É um debate em torno das soluções ousadas que precisamos ter, com respeito à soberania indígena e também à soberania nacional. Parte da importância disso está em continuar dando centralidade ao fato de que a crise climática só vai piorar, e é por isso que precisamos de soluções radicais e ousadas que partam da base e das pessoas afetadas. Como dizem as feministas e nós ecoamos: precisamos dar centralidade à vida e não ao capital na economia. Esta é uma oportunidade de enfrentar as ideias, políticas e práticas dominantes que falharam. O ano de 2020 nos mostrou que precisamos de alguma coisa que transforme e seja conduzida por pessoas que apresentam soluções revolucionárias.

Traduzido do inglês por Bianca Pessoa

Revisado por Aline Scátola

Entrevista concedida em inglês

 

Artigos Relacionados